quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Personagens

     No romance, há dois tipos de personagens distintos: as históricas e as ficcionais. Saramago pretende evidenciar dicotomicamente dois tipos de vivências humanas: uma, em que os homens se servem dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos; outra, em que os homens se servem dos próprios meios para alcançar esses mesmos fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor, que pretende fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo.

     As personagens históricas pertencem a uma classe social privilegiada (nobreza/clero) que vive a seu belo prazer, menosprezando os interesses do povo:

     D. João V – rei de Portugal. De carácter vaidoso, magnificente e megalómano pretende deixar uma obra que ateste a grandeza da sua riqueza e do seu poder, ainda que para tal se tenha de sacrificar o povo. É um “marido leviano”, cuja relação com a rainha se pauta, essencialmente, pelo cumprimento de deveres reais e conjugais. A caracterização do rei é feita predominantemente através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos – de modo indirecto.

      D. Maria Ana Josefa – oriunda da Áustria, a rainha revela-se extremamente devota e submissa, cujo papel se resume basicamente a dar herdeiros ao rei…








     A infanta D. Maria Bárbara – filha primogénita do casal real. Tem cara de lua cheia, é bexigosa e feia,
mas boa rapariga, musical a quanto pode chegar uma princesa (XXII). Casa aos 17 anos com o infante D.
Fernando de Espanha, pelo que não chega sequer a ver o convento erigido em honra do seu nascimento…
 
    O infante D. Francisco – irmão de D. João V. é um homem sem escrúpulos que cobiça o trono e a
esposa do rei, bem como se entretém a provar a sua boa pontaria de espingarda nos marinheiros que
estão nos barcos ancorados no Tejo…

     Domenico Scarlatti – músico italiano. É um homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados (XVI). Foi contratado para dar lições de música à infanta D. Maria Bárbara. Também ele partilha o segredo da construção da “passarola”, deslocando-se várias vezes à quinta do duqe de Aveiro
onde toca cravo para gáudio dos presentes…

     João Frederico Ludovice – arquitecto alemão, contratado para construir o convento de Mafra que sabe que uma vida, para ser bem sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem a viva entre os degraus do altar e os degraus do trono (XXI) …

     O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – Figura que tem fundamento histórico. Imbuído de um espírito aberto e despreconceituoso, movimenta-se na corte e na academia de Coimbra. Acalenta o sonho de um dia voar, daí o seu projecto da “passarola”, apoiado por el-rei D. João V de quem é amigo. Mantém, do mesmo modo, laços de profunda amizade com Baltasar e Blimunda, que o ajudam na construção da “máquina voadora”, e com quem, segundo as suas palavras, forma uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo (XVI). Transtornado com a perseguição da Inquisição, refugia-se em Toledo, onde acaba por falecer…
caracterização indirecta.


     Note-se que, na caracterização das personagens pertencentes a este grupo, há, quase sempre, um tom depreciativo e, não raro, irónico que marca o distanciamento temporal e, sobretudo, afectivo do narrador.
Pelo contrário, a caracterização das personagens ficcionais, a quem o narrador confere maior destaque, reveste- se de um tom francamente positivo e valorativo, tanto mais que pertencem na sua maioria a um grupo social desfavorecido e, muitas vezes, explorado/oprimido pelas classes do poder.

Os dois tipos de personagens, as histórias e as ficcionais – cuja caracterização é predominantemente indirecta e psicológica – convivem em simultâneo, sendo a intenção narrador, ao apresentar duas vivências antagónicas, desmascarar injustiças sociais quase sempre negligenciadas pela História ao longo do tempo.
    
     Baltasar Mateus – de alcunha, o sete-sóis, esteve na guerra de sucessão de Espanha, durante quatro anos,da qual foi dispensado por ter perdido a mão esquerda em combate. De regresso, começa por trabalhar no açougue no Terreiro do Paço, em Lisboa. Num auto-de-fé conhece Blimunda, a quem se liga amorosa e espiritualmente. A convite do padre Bartolomeu Lourenço, ajuda a construir a “passarola”, sonho que passa também a ser seu. Mais tarde, trabalha nas obras do convento de Mafra, primeiro como servente e, depois, como boeiro. Após a morte do padre, zela pela preservação da “máquina voadora” e, um dia, por descuido, é levado ao acaso, acabando por ser queimado 9 anos depois num auto-de-fé pela Inquisição. Trata-se de um homem do povo, analfabeto e humilde, que aceita a vida tal como esta se lhe apresenta. Ao longo da acção, vai-se dando conta do seu envelhecimento (XIII)
     Blimunda de Jesus – uma mulher do povo, a quem o padre Bartolomeu Lourenço, baptiza de “sete-Luas”. Vive um amor apaixonado, franco e leal com Baltasar. Tem o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, o que lhe permite recolher as duas mil “vontades” indispensável para a “passarola” voar. Os seus olhos são evidenciados, por diversas vezes, (V). Detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites, procura “o seu homem” durante nove anos, unindo-se ao mesmo numa comunhão espiritual ao resgatar a sua “vontade” quando finalmente o reencontra num auto-de-fé em que este está a ser queimado no fogo da Inquisição… O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao narrador, talvez pela musicalidade que ele encerra ou pela magia das suas três sílabas, símbolo da perfeição. Esta figura representa a força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.

     Sebastiana Maria de Jesus – mãe de Blimunda, um quarto de cristã-nova condenada a ser açoitada em
público e ao degredo por ter “visões e revelações” (V). Ao avistar a filha no meio da multidão que assiste à
procissão dos sentenciados pelo Santo ofício, de quem também faz parte, interroga-se sobre a identidade do
homem “tão alto, que está perto de Blimunda” …
     Marta Maria – mãe de Baltasar, é quem recebe o “filho pródigo” e Blimunda em sua casa, quando estes vão pela primeira vez juntos a Mafra.

     João Francisco ­ – pai de Baltasar (X). homem do povo cuja subsistência reside na agricultura…
     Inês Antónia – irmã de Baltasar, mãe de dois filhos, que sofre a morte do rapaz mais novo, com pouco mais de dois anos…
     Álvaro Diogo – homem do povo e antigo soldado (IV) com quem Baltasar trava amizade ao chegar a
Lisboa…
     Os trabalhadores do convento – personagem colectiva, cuja “força bruta” e esforço desmedido são
explorados de forma desumana. De entre estes, distinguem-se, nomeadamente: Francisco Marques, José
Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo…

     O povo em geral – massa anónima tantas vezes subestimada e esquecida pela História – é apresentado como o verdadeiro herói, na medida em que foi à custa do seu sacrifício, e muitas vezes da própria morte, que se tornou possível a edificação do megalómano convento. Saramago (tal como Luís de Sttau Monteiro fez em Felizmente há Luar!, se bem que em situações politicas diferentes) sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras à luz de uma nova realidade criada no presente e que tem implicações na construção de valores sociais futuros.